Estante do Refúgio: Amor...

01/08/2014

Amor...

“Acho que foi em 2004 que a vovó parou de andar. Simplesmente não conseguia mais, ela nunca foi muito ativa, dessas avós corre-mundo de novela, fazia mais o tipo avó de palavras-cruzadas, rezas católicas, Roberto Carlos e jogos do Internacional no radinho de pilhas. Meu avô era o oposto, estava sempre zanzando, sempre trazendo algo novo da rua, ou o usual hálito etílico da birita dominical com seus cupinchas de bar (quantas vezes ouvi a ordem “o almoço está quase pronto, vá buscar o seu avô!”). Eles não admitiriam – nem poderiam, entre tantos outros – mas sempre me senti o neto predileto, eu estava sempre por perto, era amoroso, gostava de brincar com os lóbulos molengas dela e assistir filmes de bang-bang e jogos de vôlei feminino com ele. Um dia meu avô me chamou no quarto. Supostamente minha avó não queria se levantar para tomar o último café do dia, e a lenga-lenga estava o deixando irritadiço. Então eu tive de dizer “ei, vô, a vó não caminha mais” e ele ficou meio confuso, as mãos na cintura, ofegando. Não deu outra, após alguns exames detalhados, o diagnóstico foi o tal do Mal de Alzheimer, coisa que só se dava com o avô dos vizinhos. Com mais alguns anos, minha avó deixou de se alimentar como um adulto, passou a se comunicar apenas com gemidos e sinais. E meu avô foi esquecendo quem eu era, quem era todo mundo. Só não esquecia da sua “Deusa”, como ele dizia, que estava sempre ali, na poltrona próxima à janela. Era um tanto irônico. Ela, com a memória de ferro intacta, vegetando. Ele, pra lá e pra cá nos corredores, perguntando às enfermeiras que horas o carro chegaria para levá-lo de volta para sua casa – onde ele já estava, de onde dificilmente saia. Na cabeça dele, estava, vai saber, na agência de Correios onde sempre trabalhou até uns 30 anos atrás. O tempo foi passando, ele deixou de assistir filmes de bang-bang, foi ficando cada dia mais esquecido, mas agressivo e impaciente, às vezes protagonizando umas cenas engraçadas, que a gente ria antes de chorar. Mas sempre zanzando. Corredor, cozinha, porta da frente sempre trancada, corredor, sala, banheiro, quarto de dormir. Como se estivesse num lugar nada residencial, trancado fora do mundo que levou décadas para construir. Então a vovó pegou uma pneumonia. Aí melhorou. Ficou ruim outra vez, os antibióticos não funcionavam. Até que me ligaram no meio da noite. “Ela piorou muito”, eu sabia, era apenas um eufemismo de quem não sabe como dar a notícia. Ao chegar no quarto, o rosto frio de quem não havia sofrido muito, os socorristas preenchendo formulários, legalizando o sono eterno. Ele deitado do lado, olhos fechados e o neuro-tique de mastigar as gengivas, sem nada desconfiar. Igual ele não discerniria, seria árduo explicar a diferença de vida e morte a um velhinho agredido por uma doença degenerativa avançada. Foi consenso não contar, às vezes a realidade apenas traz dores desnecessárias, felizes são os que vivem no mundo da lua. Pela manhã, enquanto ele contava piadas na sala, a funerária passou com o corpo. Isso foi há umas duas semanas, mais ou menos, e até hoje ele não perguntou por ela. Parece feliz, daquele jeito dele, dias bons, dias ruins, nenhum é igual. Não sei se foi o certo a fazer, mas foi o melhor. Há casos em que a correção não alivia o sofrimento de ninguém. Mas uma coisa me veio à cabeça, enquanto o padre fazia a extremunção divertindo o pessoal melhor do que faria Jerry Seinfeld, um verdadeiro showman. Será que ela não segurou a barra de viver entrevada esse tempo todo só para morrer quando justamente não o faria sofrer? Impossível saber, mas eu acho que sim, seria uma prova de amor contundente no meio dessa matilha de relações egoístas. E, apesar de não crer muito nessas coisas, também gosto de pensar que ela foi para um lugar melhor. Um lugar onde as pessoas lembram do seu nome.”
— Gabito Nunes.

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